01 A pesquisa em gramática também tem
02 seus mistérios – aspectos da língua que
03 ninguém conseguiu até hoje formular direito.
04 Acho que não exagero se disser que a maioria
05 dos fenômenos gramaticais já observados não
06 tem uma explicação satisfatória. Vejamos um
07 exemplo.
08 Sabemos que, em muitas frases, o sujeito
09 exprime o ser que pratica a ação (ou, mais
10 exatamente, que causa o evento). Isso
11 acontece na frase: Minervina entortou meu
12 guarda-chuva. Acontece que, com o verbo
13 entortar, nem sempre o sujeito exprime quem
14 pratica a ação. Se não houver objeto, isto é,
15 se só houver o sujeito e o verbo, o sujeito
16 exprime quem sofre a ação, como em Meu
17 guarda-chuva entortou. Essa frase,
18 naturalmente, não significa que o guarda-
19 chuva praticou a ação de entortar alguma
20 coisa, mas que ele ficou torto. Mesmo se o
21 sujeito fosse o nome de uma pessoa (que, em
22 princípio, poderia praticar uma ação), o efeito
23 se verifica: Minervina entortou. Essa frase
24 quer dizer que Minervina ficou torta, não que
25 ela entortou alguma coisa.
26 A mudança de significado do sujeito que
27 vimos acima acontece com muitos verbos do
28 português; por exemplo, quebrar, esquentar,
29 rasgar. Uma vez que é bastante regular, esse
30 comportamento deve (ou deveria) ser incluído
31 na gramática portuguesa.
32 Agora, o mistério: em certos casos, o
33 fenômeno da mudança de significado do
34 sujeito não ocorre, e ninguém sabe ao certo
35 por quê. Assim, podemos dizer O leite
36 esquentou, e isso significa que o leite se
37 tornou quente, não que ele esquente alguma
38 coisa. Mas na frase Esse cobertor esquenta,
39 entende-se que o cobertor esquenta a gente
40 (isto é, causa o aquecimento), e não que ele
41 se torne quente. Ninguém sabe direito por
42 que verbos como esquentar (e vários outros)
43 não se comportam como o esperado em
44 frases como essa. Provavelmente, o
45 fenômeno tem a ver com a situação evocada
46 pelo verbo. Mas falta ainda um estudo
47 sistemático, e, por enquanto, esses fatos não
48 cabem em teoria nenhuma.
49 Enfim, para quem gosta de certezas e
50 seguranças, tenho más notícias: a gramática
51 não está pronta. Para quem gosta de
52 desafios, tenho boas notícias: a gramática não
53 está pronta. Um mundo de questões e
54 problemas continua sem solução, à espera de
55 novas ideias, novas análises, novas cabeças.
Adaptado de: PERINI, M. A. Pesquisa em gramática. In: Sofrendo a gramática: ensaios sobre linguagem. São Paulo: Ática, 2000. p.82-85.
Este texto é dirigido ao público em geral, valendo-se o autor de diversos recursos textuais para se aproximar do leitor.
Considere as seguintes afirmações, a respeito desses recursos.
I - O emprego da primeira pessoa do plural Vejamos (l. 06) e vimos (l. 27) inclui autor e leitor na ação descrita, o que cria um efeito de participação conjunta no desenvolvimento da argumentação.
II - O emprego de expressões como Acontece que (l. 12) sabe direito (l. 41) e Um mundo (l. 53) remete a usos coloquiais da língua portuguesa.
III - O emprego de pronomes oblíquos em posições variadas, como em entende-se (l. 39) e se torne (l. 41) só se justifica pela coloquialidade do texto, uma vez que, nas convenções de escrita padrão do português, o pronome só pode ocorrer depois do verbo.
Quais estão corretas?