Instruções: As questões de 10 a 17 estão
relacionadas ao texto abaixo.
1. Não faz muito que temos esta nova TV
2. com controle remoto, mas devo dizer que se
3. trata agora de um instrumento sem o qual eu
4. não saberia viver. Passo os dias sentado na
5. velha poltrona, mudando de um canal para o
6. outro – uma tarefa que antes exigia certa
7. movimentação, mas que agora ficou muito
8. fácil. Estou num canal, não gosto – zap, mudo
9. para outro. Eu gostaria de ganhar em dólar
10. num mês o número de vezes que você troca
11. de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-
12. se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo
13. menos indica disposição para o humor,
14. admirável nessa mulher.
15. Sofre minha mãe. Sempre sofreu: infância
16. carente, pai cruel, etc. Mas o seu sofrimento
17. aumentou muito quando meu pai a deixou. Já
18. faz tempo; foi logo depois que eu nasci, e
19. estou agora com treze anos. Uma idade em
20. que se vê muita televisão, e em que se muda
21. de canal constantemente, ainda que minha
22. mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma
23. moça sorridente pergunta se o caro
24. telespectador já conhece certo novo sabão
25. em pó. Não conheço nem quero conhecer, de
26. modo que – zap – mudo de canal. ―Não me
27. abandone, Mariana, não me abandone!‖.
28. Abandono, sim. Não tenho o menor remorso,
29. e agora é um desenho, que eu já vi duzentas
30. vezes, e – zap – um homem falando. Um
31. homem, abraçado ........ guitarra elétrica, fala
32. ........ uma entrevistadora. É um roqueiro. É
33. meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas,
34. falta-lhe um dente. É o meu pai.
35. É sobre mim que ele fala. Você tem um
36. filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e
37. ele, meio constrangido – situação pouco
38. admissível para um roqueiro de verdade –, diz
39. que sim, que tem um filho só que não vê há
40. muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta:
41. você sabe, eu tinha que fazer uma opção, era
42. a família ou o rock. A entrevistadora, porém,
43. insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de
44. rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock?
45. Ele se mexe na cadeira; o microfone,
46. preso ........ desbotada camisa, roça-lhe o
47. peito, produzindo um desagradável e bem
48. audível rascar. Sua angústia é compreensível;
49. aí está, num programa local e de baixíssima
50. audiência – e ainda tem de passar pelo
51. vexame de uma pergunta que o embaraça e à
52. qual não sabe responder. E então ele me
53. olha. Vocês dirão que não, que é para a
54. câmera que ele olha; aparentemente é isso;
55. mas na realidade é a mim que ele olha, sabe
56. que, em algum lugar, diante de uma tevê,
57. estou a fitar seu rosto atormentado, as
58. lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu
59. olhar ele procura a resposta ........ pergunta
60. da apresentadora: você gosta de rock? Você
61. gosta de mim? Você me perdoa? – mas aí
62. comete um engano mortal: insensivelmente,
63. automaticamente, seus dedos começam a
64. dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do
65. velho roqueiro. Seu rosto se ilumina e ele vai
66. dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto
67. quanto ele, mas nesse momento – zap –
68. aciono o controle remoto e ele some. Em seu
69. lugar, uma bela e sorridente jovem que está –
70. à exceção do pequeno relógio que usa no
71. pulso – nua, completamente nua.
Adaptado de: SCLIAR, M. Zap. In: MORICONI, Í.
(Org.) Os cem melhores contos brasileiros.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 547-548.